A análise dos documentos relativos aos 28 anos em que Jair Bolsonaro foi deputado federal, de 1991 a 2018, mostra uma intensa e incomum rotatividade salarial de seus assessores, atingindo cerca de um terço das mais de cem pessoas que passaram por seu gabinete nesse período.
O modelo de gestão incluiu ainda exonerações de auxiliares que eram recontratados no mesmo dia, prática que acabou proibida pela Câmara dos Deputados sob o argumento de ser lesiva aos cofres públicos.
A Folha se debruçou nos últimos meses sobre os boletins administrativos da Casa, identificando uma ação contínua. De um dia para o outro, assessores chegavam a ter os salários dobrados, triplicados, quadruplicados, o que não impedia que pouco tempo depois tivessem as remunerações reduzidas a menos de metade.
Mesmo assim, dois deles disseram à reportagem nem mesmo se lembrar dessas variações formalizadas pelo gabinete de Jair Bolsonaro.
Nove assessores de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) que tiveram o sigilo quebrado pela Justiça na investigação sobre “rachadinha” (desvio de dinheiro público por meio da apropriação de parte do salários de funcionários) na Assembleia Legislativa do Rio foram lotados, antes, no gabinete do pai na Câmara dos Deputados.
Ao menos seis deles estão na lista dos que tiveram intensa movimentação salarial promovida por Jair Bolsonaro quando era deputado federal.
É o caso da assessora Marselle Lopes Marques, que ficou cerca de um ano e meio lotada no gabinete de Bolsonaro, em 2004 e 2005.
Ela ingressou com um dos menores salários, R$ 261 (valores da época). Três meses depois, foi mudada de cargo e dobrou a remuneração. Com um ano, passou a ganhar o maior contracheque entre todos os assessores, R$ 6.011. Três meses depois, o salário foi cortado em 90%.
Nomeada posteriormente no gabinete de Flávio, no Rio, Marselle é uma das investigadas no suposto esquema de “rachadinha” na Assembleia.
Filha do policial militar aposentado Fabrício Queiroz (pivô do escândalo das “rachadinhas” e atualmente preso no Rio), Nathália Queiroz também passou por oscilações salariais no gabinete de Jair Bolsonaro até ser demitida, em 15 de outubro de 2018, mesmo dia em que seu pai foi exonerado por Flávio.
Como mostrou a Folha, ao mesmo tempo que era contratada na Câmara, ela atuava como personal trainer no Rio.
Outro exemplo é o de Walderice Santos da Conceição, a Wal do Açaí. Recordista das movimentações, ela passou por 26 alterações de cargos no gabinete de Jair Bolsonaro nos anos em que esteve lotada —de 2003 a 2018.
Wal foi flagrada pela Folha exercendo, na verdade, a atividade de vendedora de açaí em Angra dos Reis (RJ), onde Bolsonaro tem uma casa de praia. Após a revelação, o Ministério Público deu início a uma investigação.
Também chama a atenção o caso de Patrícia Cristina Faustino de Paula, que depois ingressou no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Patrícia foi registrada por Jair Bolsonaro em 2008 e sofreu 20 alterações de cargo. Entrou com um dos mais baixos contracheques, menos de R$ 1.000, atingiu R$ 8.040 em 2012, mas depois figurou na menor remuneração do gabinete (R$ 845), em setembro de 2013.
Até abril de 2003, essa montanha-russa funcional se dava por meio de exonerações de fachada, em que o auxiliar tinha a demissão publicada e, no mesmo dia, era renomeado para o gabinete, geralmente para outro cargo.
De acordo com o ato da mesa da Câmara 12/2003, a prática tinha como único objetivo forçar o pagamento da rescisão contratual dos assessores, com 13º salário proporcional e indenização por férias, não raro acumuladas acima do período permitido em lei.
Nos 12 meses anteriores à edição do ato, o gabinete de Bolsonaro registrou 18 exonerações de assessores que foram recontratados no mesmo dia —9 no mês anterior, sendo um deles na véspera da publicação da medida.
A partir de 2 de abril de 2003, a Câmara passou a só permitir a readmissão após 90 dias da saída e acabou com o pagamento de rescisão para trocas de cargos, que passaram a ser feitas pelos parlamentares sem necessidade de exoneração.
Com isso, o carrossel salarial no gabinete do hoje presidente da República caiu para menos da metade nos 12 meses seguintes à edição do ato, de 18 para 7.
“A atual sistemática vem provocando distorção que deve ser rapidamente eliminada, sob pena de agravarem-se os prejuízos financeiros já arcados pela Casa”, diz texto de justificativa que acompanhou o ato da mesa, instância máxima de administração da Câmara.
“Servidores […] recebem em pecúnia os períodos de férias não gozados, quando ocorre mudança de nível de SP [secretário parlamentar] ou CNE [cargo de natureza especial], momento em que são exonerados de um nível para serem nomeados em outro”, diz.
“Mas esse procedimento contraria o objetivo preconizado nos arts. 7º da Constituição Federal e 78, § 3º da lei n° 8.112/90 [do servidor público], que é impor à administração pública o dever de indenizar as férias daqueles que se desliguem do órgão a que este estejam vinculados, de sorte que, inexistindo o efetivo desligamento, não se justifica indenizar o servidor”, completa.
De acordo com integrantes da área técnica da Casa, a medida foi motivada ainda por outros agravantes: o de que deputados promoviam “caixinhas” em seus gabinetes com parte das verbas rescisórias dos auxiliares, em um esquema ganha-ganha, para o parlamentar e o assessor.
O deputado, que tem a responsabilidade sobre o controle de ponto de seus funcionários, deixava de registrar as férias tiradas por auxiliares, elevando de forma fraudulenta o valor gasto pela Câmara na hora do pagamento das rescisões.
Assim como fez com os boletins administrativos relativos ao gabinete de Bolsonaro, a Folha analisou todos os documentos relativos a outro ex-deputado do Rio, com mais tempo de Casa do que Bolsonaro, a título de comparação.
No caso de Miro Teixeira (Rede-RJ), deputado dos anos 1970 a 2018 (ele ficou licenciado em 2003 para ocupar o cargo de ministro das Comunicações), a situação se afigurou bastante distinta.
Nos mesmos 28 anos de Bolsonaro, ele promoveu número muito menor de trocas de cargos de funcionários de seu gabinete —107, de acordo com os boletins administrativos, contra ao menos 350 do hoje presidente.
No caso de Miro, a quase totalidade das trocas representam ajustes pequenos, não há praticamente nenhuma mudança salarial abrupta, como ocorreu de forma rotineira no caso do gabinete de Bolsonaro.
A Folha procurou nos últimos dias dezenas dos ex-assessores de Bolsonaro, alguns deles hoje lotados nos gabinetes dos filhos. Alguns não foram localizados, outros não quiseram falar. Apenas dois conversaram com a reportagem e responderam a perguntas.
Telmo Broetto, hoje assessor de Eduardo, diz ter tido poucas variações de cargos em seus 14 anos no gabinete de Bolsonaro (foram seis mudanças).
“Não posso dizer nada a respeito porque não era a minha área. Mas você pode pegar a minha ficha e eu não tive essa mudança. Fiquei 14 anos lá e acho que tive uma progressão só”, disse, acrescentando não se lembrar especificamente de mudanças que reduziram seu contracheque. “Para mim eu acho que não acontecia isso aí não. Meu caso, eu era peão, fazia meu trabalho.”
Manoel da Cruz Santos Filho, que deixou o gabinete de Bolsonaro em 2006, também disse não se lembrar da situação. “Ih, rapaz, faz tanto tempo que saí de lá, não me lembro. Já passei por tanto lugar, fiz tanta coisa depois disso. Quando saí, me desliguei de tudo de lá”, afirmou. Ele foi mudado de cargo por 12 vezes.
Entre os cerca de 30 ex-funcionários que protagonizaram a montanha-russa funcional no gabinete de Bolsonaro há vários parentes entre si.
Reportagem do jornal O Globo de 2019 mostrou que o clã Bolsonaro —Jair e seus três filhos políticos, Flávio, Carlos e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP)— contratou, desde os anos 1990, 102 pessoas que têm algum parentesco entre si, em 32 núcleos familiares diferentes.
Fruto da mesma apuração, a revista Época relatou naquele mesmo mês que os salários de assessores da família Bolsonaro oscilavam de forma incomum e com frequência.
A Câmara dos Deputados tem uma das mais generosas verbas do país para gasto dos parlamentares com assessores. Atualmente, cada um dos 513 deputados tem cota mensal de R$ 111,7 mil para contratação dos chamados secretários parlamentares.
Cabe ao deputado decidir, dentro dessa cota e respeitado o quantitativo de no mínimo 5 e no máximo 25, quantos contratar e em quais cargos encaixar cada um deles. O leque salarial permitido pela Câmara é hoje de 50 faixas, com remuneração que vai de R$ 1.025,12, para funções mais simples, a R$ 15.698,32, valor geralmente pago a chefes de gabinete.
A Folha encaminhou sete perguntas à Secretaria de Comunicação da Presidência, mas não houve resposta até a conclusão desta reportagem.
No início de 2018, quando ainda era pré-candidato ao Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro chegou a falar sobre a intensa oscilação salarial da auxiliar Walderice Santos da Conceição, a Wal.
Ela, apesar de figurar na lista de funcionários de seu gabinete na Câmara dos Deputados, tinha como atividade a venda de açaí em uma loja da Vila Histórica de Mambucaba, distrito de Angra dos Reis (RJ), onde o hoje presidente tem uma casa de praia.
“O que de vez em quando acontece: um funcionário é demitido. Aquela verba que ‘sobra’ então a gente destina para um [outro] funcionário, por pouquíssimo tempo.
Tem uma verba fixa para pagar funcionários. Ganha tão pouco, por que não posso dar uma ajuda por dois, três meses? Em vez de pagar R$ 1.300, paga R$ 1.500 ou R$ 2.000”, disse Bolsonaro à Folha, em sua casa de praia.
Walderice é mulher do caseiro de Bolsonaro. Uma investigação foi aberta pelo Ministério Público para apurar o caso revelado pela Folha.
De acordo com relatos, a gestão dos funcionários do gabinete era coordenada pelo então chefe de gabinete de Bolsonaro, Jorge Francisco, morto em 2018. Ele é pai do atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira.
O ministro foi funcionário do gabinete de Bolsonaro e também sofreu alterações de cargos —sete no período em que esteve lotado, de 2005 a 2015. Procurado por meio da assessoria de imprensa do ministério, ele não se manifestou.