Os sucessivos recordes negativos de gelo marinho na Antártida em 2023 reforçaram o alerta de pesquisadores sobre os efeitos dessas diminuições na circulação atmosférica e na formação de ciclones e chuva.
Entre as consequências possíveis estão a mudança de posição e intensidade dos ciclones, que provocam chuvas como as que atingiram o Rio Grande do Sul recentemente. Ainda, se a tendência de águas mais quentes diminuir a formação de gelo marinho, o impacto vai chegar à cadeia alimentar, com efeitos indiretos em animais de grande porte, como as baleias.
Embora não seja possível dizer qual é a parte que cabe às mudanças climáticas no degelo marinho, especialistas apontam que o aquecimento global têm participação na mudança do cenário.
O recorde negativo foi apontado em dados preliminares do Centro Nacional de Dados de Neve e Gelo dos Estados Unidos (NSIDC, na sigla em inglês) no fim de setembro. Em 10 de setembro, havia 1 milhão de km² a menos de gelo marinho do que na mínima anterior, de 1986.
Para o chefe do departamento de geografia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Francisco Aquino, as mudanças podem significar, para os próximos anos, mudanças no local de formação e na intensidade de ciclones extratropicais.
“Compreendemos que um planeta mais quente, com uma Antártida com anomalia de gelo menor, intensifica algumas circulações atmosféricas e poderia aumentar eventos extremos”, afirma o climatologista, conhecido como Chico Geleira por sua pesquisa na Antártida.
Isso porque, segundo Aquino, um planeta mais quente força um contraste maior de temperatura entre a Antártida e a região subtropical. “Em alguns momentos, essa sincronia dispara ciclones com maior impacto ou ondas de frio mais intensas no Brasil. Portanto, diminuir o gelo marinho pode ser uma condição de intensificar eventos extremos no nosso hemisfério.”
Mais calor, inclusive nos oceanos, leva a um ajuste na circulação de ventos, que vai mudar a formação dos ciclones. Ainda, menos gelo para refletir a radiação solar significa que mais calor será absorvido pelos oceanos. Para Aquino, o mesmo raciocínio vale para outras regiões além do sul do Brasil, como o sul da África do Sul e a Austrália.
O crescimento de gelo na volta da Antártida, segundo Aquino, pode ter sido causado também por mudanças climáticas. “A intensificação de ciclones, com os ventos ao redor da Antártida, revolviam a água, mantendo a baixa de temperatura e uma consistência para o gelo marinho.”
Em 2015 e 2016, anos de um super El Niño, houve a maior retração de gelo no fim do inverno até então. “Foi o que chamou a atenção para estudarmos a região naquela época.”
As reduções de gelo na Antártida lembram o que aconteceu no Ártico três décadas antes. Aquino explica que o gelo no hemisfério sul não foi tão afetado quanto seu par ao norte por não haver a pressão do calor continental da Europa.
Para Ilana Wainer, professora no departamento de oceanografia física do Instituto Oceanográfico da USP, é possível relacionar a diminuição do gelo marinho com oceanos mais quentes. “Desde 2014, entre 100 e 200 metros abaixo da superfície, a água aqueceu bastante.”
Ainda não é possível, no entanto, separar totalmente o que é aquecimento global das variações que já ocorrem na região da Antártida. “Mudança climática acontece num tempo longo, e os dados de satélite para o gelo começaram em 1979”, diz.
A pesquisadora lembra que a redução do gelo marinho remete a uma preocupação já conhecida de aumento do nível do mar. “O gelo marinho funciona como amortecimento para o gelo na costa contra tempestades e marés violentas.”
Assim, com menor proteção, o manto tende a sofrer mais os efeitos de intempéries e descongelar.
Para além da circulação atmosférica e do reposicionamento de desastres, os efeitos de uma mudança drástica podem atingir uma gama diversa de vida não humana. Além de episódios como a morte de colônias inteiras de filhotes de pinguim-imperador registrada em um estudo no ano passado, há um impacto sistêmico.
Na base da cadeia alimentar da região está o krill antártico, principal fonte de alimento para focas e baleias.
“Estas variações na temperatura do oceano exercem pouca ou nenhuma influência direta em mamíferos como focas, lobos-marinhos e baleias, mas têm enorme efeito indireto”, afirma Eduardo Secchi, pesquisador do projeto Ecopelagos/Proantar, que estuda cetáceos.
O krill, um crustáceo semelhante ao camarão, se alimenta de um tipo específico de microalgas marinhas, as diatomáceas, que ficam presas ao gelo. Mudanças no estoque dessa alga podem causar a redução na quantidade do animal, chave para a cadeia alimentar na Antártida.
“Com as alterações climáticas, tem sido observado, em certas condições, o surgimento de um outro tipo de microalgas, as criptófitas”, diz Carlos Rafael Mendes, pesquisador do projeto Ecopelagos/Proantar da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
Como o krill não se alimenta de criptófitas, sua abundância declina, reduzindo a oferta de comida e energia para predadores até o topo de cadeia, como pinguins e baleias. Uma vez que muitas espécies voltam sempre às mesmas regiões, buscar alimento em outros lugares exige mais energia.
“Na região oeste da Península Antártica, uma das regiões do planeta com as maiores taxas de aquecimento, tem sido observado um deslocamento ao sul na distribuição de colônias de pinguins que dependem do gelo”, diz Secchi.
FOLHAPRESS