Em uma rede social da internet, João, de 13 anos, conheceu Maria, supostamente da mesma idade, num grupo formado por adolescentes. Já Ana, também adolescente, começou a interagir com José, da mesma faixa etária, em outra plataforma. Em comum entre as duas situações, é o fato de que, em ambos os casos, que serão relatados mais à frente, adultos abusaram ou exploraram alguns deles, a partir desse contato virtual. São evidências que mostram o crescimento da violência sexual contra crianças e adolescentes que rompeu as fronteiras tradicionais e torna os menores mais vulneráveis pela internet.
O alerta vem da rede de proteção que conta com entidades da sociedade civil organizada e órgãos dos três poderes e entes federativos, que atuam para prevenir, combater esses crimes e penalizar abusadores. “Temos um novo desafio e bem mais complexo, que é investigar nesse universo da internet com as dificuldades em relação a alguns provedores, a alguns canais”, ressalta o promotor da Infância e Juventude do Ministério Público do RN, Manoel Onofre Neto.
O que ele diz se reflete no Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que registrou, nos primeiros meses de 2023, um aumento de 68% nas violações sexuais contra crianças e adolescentes em relação ao mesmo período do ano passado no Brasil.
No cenário local, as Delegacias de Proteção a Criança e Adolescente (DPCA) de Natal, Parnamirim e Mossoró, maiores cidades potiguares, instauraram somente neste ano 144 procedimentos policiais, sendo 114 inquéritos e 30 Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO). Foram 15 prisões entre todas as DPCAS, segundo informou a Delegacia Geral de Polícia Civil (Degepol).
No mês de maio, quando se realiza o dia nacional de combate a exploração infantil, foram realizadas diversas ações pelas 3 DPCAS, culminando em 8 prisões, mais de 5 mil arquivos digitais contendo pornografia infantil apreendidos e três adolescentes resgatadas da exploração infantil.
Também ocorreram abordagens em 23 locais de possíveis pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes, em Natal e Grande Natal. A DPCA de Mossoró apreendeu três dispositivos eletrônicos, contendo mais de 2 mil arquivos digitais com pornografia e duas armas.
“Um aspecto que torna a questão ainda mais delicada é que o primeiro acesso de aproximação tem sido viabilizado pela internet, mas é preciso deixar claro que temos como chegar a esses criminosos, que há ferramentas para encontrá-los”, declara o promotor.
A violência sexual está no abuso e na exploração. O primeiro é mais conhecido pelo estupro. Se o adolescente tem menos de 14 anos, é considerado estupro de vulnerável. Se essa relação tem alguma troca de dinheiro, presentes, favores, ou retira a pessoa de uma cidade para outra, se torna exploração sexual.
A Casa Renascer, Centro de Defesa de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (CEDECA), trabalha em todas as linhas da violência sexual. O assessor técnico da entidade, Gilliard Laurentino, diz que ainda é difícil fazer um parâmetro real do número de casos, devido à subnotificação.
“O IPEA, principal Instituto de Pesquisa do país, traz que apenas 10% dos casos chegam para a política pública. Já o dado mais recente do Ministério da Justiça, aponta que apenas 7% são registrados. E aí a gente começa a ter os problemas, porque a gente não consegue dar conta da demanda de casos que chega”, relata.
Abusadores se disfarçam na internet
Segundo o promotor da Infância e Juventude, Manoel Onofre Neto, os abusadores usam de diferentes estratégias para evolver as vítimas pelos meios digitais. “Fizemos a apreensão de um adolescente com um arsenal de pornografia infantil. Através da própria internet, ele era encorajado pelo abusador a convencer outros menores de que vender fotos íntimas era uma maneira comum de ganhar dinheiro”, conta.
Esse foi o caso da Ana (nomes fictícios), que foi vítima do José, citado no início dessa matéria. Uma operação de busca e apreensão descobriu o esquema. “Mas não era só um aliciador. Ele começou com uma pessoa e aí foi repassando para outras e várias figuras consumiam esse material, como se fosse uma espécie de ‘redezinha’ de pessoas com interesse nisso”, explica o promotor.
Muitas vezes, quando busca conseguir material pornográfico, o criminoso argumenta que não precisa aparecer o rosto, assegurando que não terá como identificar a pessoa. Mas o promotor ressalta que não há garantia nenhuma para isso. “Não pode enviar absolutamente nenhum elemento da intimidade, seja de localização, cópia de documento, nem dar informações sobre a família”, disse ele.
Essas informações podem ser utilizadas pelos criminosos para chantagear e ameaçar as vítimas. Foi o que aconteceu no caso do João, de 13 anos, mencionado na abertura dessa reportagem. Ele acreditava estar conhecendo a adolescente Maria, que se tratava de um adulto disfarçado no grupo virtual em que interagiam. Em poucos meses, a interação avança para troca de fotos íntimas porque o abusador tinha fotos de rosto e também do corpo de uma adolescente que usava para dizer que era a Maria.
Chega o ponto da “menina” dizer que conheceu um homem e convidar João para um encontro a três, alegando ser algo comum na idade deles esse tipo de experiência, naturalizando a situação. Contudo, ao chegar no local, o menino se depara apenas com o homem. “O menino, inexperiente, foi para esse encontro e infelizmente sofreu abuso. O abusador está preso”, conta Manoel Onofre.
Depois, o criminoso tenta fazer o garoto reencontrá-lo e, ao se negar, a vítima começa a sofrer chantagem e ameaças, até que o bandido divulga suas fotos íntimas. O bandido já teve, inclusive, duas condenações e aliciou, pelo menos 11 adolescentes.
Apesar desse estar preso, outros casos semelhantes devem estar acontecendo neste momento com outras vítimas. “A gente já tinha dificuldade de lidar com os casos que aconteciam fora da internet, tanto que ainda estamos em processo de modificação da nossa legislação para garantir que esse tipo de caso (na internet) também seja considerado estupro. há cerca de um mês, por exemplo, a gente conseguiu o primeiro caso de condenação por estupro na internet”, destaca Gilliard Laurentino, do CEDECA.
Tribuna do Norte